
Lua nova - Rohini 10°23’ - 23°20’ Touro
(para escutar enquanto lê :)
Pegamos a balsa das 8:40AM para chegar na segunda ilha: Teshima.
No folheto com o mapa da região, alguns avisos e recomendações, entre eles “por favor seja educado e cumprimente as pessoas”, mas o meu preferido foi “aproveite a inconveniência exclusiva dessa ilha”.
Desembarcamos em outro tempo. Algumas senhoras que aguardavam a balsa em fila se curvavam e diziam “konichiwa” para cada passageiro que saía do barco. O dia de sol criava um verde forte na mata que cobria a ilha, um cenário comum para uma brasileira, não fossem as placas em japonês, a limpeza impecável do pequeno porto, vending machines e a loja de aluguel de bicicletas (que também era uma sorveteria) com um casal local recebendo e cuidando dos clientes do dia. Ela, uma senhora paciente e aparentemente bem-humorada. Repetia exatamente a mesma sequência de palavras em japaningles instruindo cada pessoa a respeito das bicicletas elétricas. Ele, muito sério, preparava e posicionava as bicicletas da mesma forma, no mesmo lugar, em pares, para que ela começasse as instruções após receber o devido valor pelo aluguel. Assim seguia a fila, até o último cliente.
Tínhamos uma garrafa de água de plástico vazia, e perguntei se teriam uma lata de lixo para jogar fora. Eles olharam para aquela garrafa como se fosse um demônio e disseram, categoricamente, “não”: cruzando os antebraços na frente do próprio corpo, tipo um escudo defensivo. A primeira vez que recebi um desses no Japão me senti repelida como num hadouken do Street Fighter. Um não assim tão negativo, na pele, vindo de um estranho, me assustou. Mas confesso que uma parte de mim gostou: limites claros. Depois fui entender que, na realidade, dizer não nessa cultura é um processo muito mais delicado. Há uma dificuldade inerente em negar algo ou causar desapontamento, existindo uma série de expressões e maneirismos para suavizar uma recusa ou impossibilidade. Não foi bem o que houve ali, eles realmente não queriam aquele plástico.
A ilha de Teshima é habitada há 14.000 anos. Possui uma área de 14,6 Km2 e uma população de aproximadamente 1.000 habitantes. No centro da ilha se encontra Mt. Dan’yama, 340 metros acima do nível do mar. A montanha é fonte de Teshima-ishi (Teshima Stone ou Tufo Vulcânico), responsável por purificar a água da chuva, que é depois usada pela pequena população no dia a dia, para o cultivo de arroz e outras atividades.
Durante os anos 70 a ilha foi alvo de despejo ilegal de lixo, situação que durou 16 anos. Os esforços incansáveis dos residentes resultaram num acordo no ano de 2000, mas a vida na ilha não se recuperou completamente. Uma vez que o problema do despejo ilegal foi amplamente divulgado em todo o país durante a disputa, a cobertura da mídia que pretendia apoiar os ilhéus resultou ironicamente em Teshima sendo rotulada de "a ilha dos resíduos industriais”1.
Em 2010, foi inaugurado o Teshima Art Museum, um projeto com o objetivo de unir natureza, arte e arquitetura, contribuindo para o restauro do ambiente original da ilha, que hoje é parte de um conjunto de “ilhas artísticas” na região Setouchi, no sul do Japão.
Coloco a garrafinha vazia na bolsa, pegamos as bicicletas e começamos a subir. Montanha acima, camadas de campos de arroz, de plantações, de terra e vidas simples. Uma caixa cheia de laranjas num cantinho da rodovia e um saquinho ao lado para deixar dinheiro. Um simpático pizzaiolo numa minivan. E um museu, em formato de gota d’água, onde a obra de arte principal é a interação dos elementos da natureza com esse útero branco cavado na terra e com seus silenciosos observadores: humanos, formigas e outros pequenos insetos, que se destacam na vastidão branca desprovida de ângulos retos.
Fiquei sem ar. Ou melhor, fiquei cheia dele, ao sentir o vento fazendo seu caminho pela construção totalmente integrada à natureza, ao escutar o seu som tocando as árvores e meus poros. Descalços, no chão frio, água corre. Brota de minúsculas fontes fluindo infinitamente.
No chão, terra e água. Frias como são. No alto, o calor do sol e o movimento do vento. Em volta, espaço, habilmente desenhado para destacar a constante dança elemental da vida, não passar despercebida, mas ser em si a grande obra a testemunhar.
A luz entra pelas cavidades da grande gota, os observadores se movimentam para experimentar tudo a partir de diversos ângulos. Sentados, deitados, de pé, olhando pra cima, pra baixo, de olhos fechados. A cada movimento, um novo ambiente. Um novo conjunto de possibilidades. Aparências incontáveis. Tempo se torna uma variável irrelevante. Há somente nós, e aquilo do que somos feitos, num grande útero irrigado ininterruptamente.
Saí de lá preenchida de um silêncio tão profundo que falar qualquer coisa me parecia uma heresia. Como definir? Não dá, apenas tentar descrever o que chegou até mim pelos sentidos.
Ichi-go-ichi-e (一期一会): “uma vez, um encontro”. Esse conceito de transitoriedade do zen budismo ensina a entregar-se ao que se apresenta, tal como se apresenta. Cada momento é único e irreproduzível.
Senti isso um tanto durante toda a viagem no Japão, “um lugar cuja ordem parece sustentada pela lógica de um sonho.”2
Um encantamento me tomou, como se tivesse pousado em outro planeta, com regras e condutas perplexamente diferentes mas fantasticamente impactantes. Foi um pouco como quando cheguei na Índia pela primeira vez: o cérebro tem que se rearranjar para acomodar uma forma de viver que até testemunharmos nos parece impossível.
Não tinha ainda me encontrado com uma sociedade que integra espiritualidade, ancestralidade, civilidade, tecnologia e inovação. O Japão, em sua originalidade cultural, em sua contemporaneidade pós-humana, faz isso.
“Suspenso entre uma população envelhecida e uma pós-modernidade extrema, entre oposição ao progresso e experimentação científica, o Japão é um ponto de observação ideal de onde se pode ver o mundo como ele é hoje e como será amanhã.” - Japão. The Passenger. Para Exploradores do Mundo.
Justaposição surreal. A memória ancestral permeia as composições arquitetônicas que às vezes parecem saídas da ficção científica. Permeia também as organizadíssimas facilidades urbanas, as subculturas das megalópoles, a arte, a comida, as relações.
Dizem que a honra aos ancestrais é a verdadeira espiritualidade japonesa. Mas para além de qualquer crença, ao observar a diligência com que tarefas simples são executadas enxerga-se espiritualidade em uma pré-disposição com a vida - como diz o Zen Koan3 “Before enlightenment chop wood, carry water; after enlightenment chop wood, carry water.”
Há uma simplicidade um tanto sofisticada nesse jeito de ser. Uma ausência de protagonismo, substituído pela importância do coletivo, reafirmada em pequenos pactos de não-agressão. Na comunicação pública e privada, no reconhecimento das condutas que orientam a vida comum, no uso respeitoso de espaços.
Ah o espaço! O espaço talvez seja o fator determinante na delicada harmonia sensorial e estética japonesa. Ele tem um nome, Ma. Trata-se da noção conjunta de espaço e tempo, o intervalo entre duas ações ou eventos, ou também um vazio espacial. “Ma não faz parte da lógica linear, mas daquela coordenada por relações; não se apresenta como conceito, mas como um modus operandi vivo no cotidiano dos japoneses.”4
Desde minha vida passada como planejadora de marcas me fascina o design japonês, e o motivo desse fascínio é exatamente esse respiro espacial, que tanto faz por todos os elementos da composição. O vazio tem função.
Ma é uma das leituras do ideograma 間, representado por dois kanjis: o sol 日 e o portal 門. “Ma possui múltiplas semânticas - uma delas é a do espaço de possibilidade e disponibilidade e outra é a de espaços intervalares, que desconstrói o pensamento dual e aposta na possibilidade de um espaço intermediário que pode ser concomitantemente as duas coisas.”5
Um exemplo de Ma é a função do espaço entre a entrada de um templo xintoísta, onde encontramos invariavelmente um portal, o torii, e o templo em si. Percorrer esse caminho é uma atitude simultaneamente externa e interna: a cada passo, nos aproximamos de um espaço sagrado, e nos distanciamos de questões mundanas. É necessário se encontrar com o templo em uma atitude de esvaziamento, e o caminho oferece tempo de preparo interno para cada visitante.
Esse tempo-espaço se torna tão determinante na composição das experiências, quanto as experiências em si.
Volto à Teshima, agora a uma outra parte da ilha, um cantinho escondido, não no alto da montanha mas na beira do mar. De bicicleta passamos pelas casas da vila de Karato, por cenas do dia a dia, uma quadra de basquete bastante peculiar, uma trilha, depois por árvores com galhos baixos, até chegarmos a um templo, em uma praia escondida. Nela, uma pequena casa em yakisugi - o cedro queimado, técnica de proteção da madeira que confere sua aparência preta. Na entrada da casa, uma placa em francês “Les archives du coeur”.
Não sei o que eu estava esperando, mas encontrei poesia. E parte da poesia foi o caminho para encontrá-la. Entro na casa. Duas mulheres sentadas em um balcão cobrando ingressos, uma cena banal. Não entendo direito para que são aqueles ingressos, a casa parecia tão pequena de fora, era nossa última visita do dia e “lost in translation” uma realidade na comunicação. Pego os ingressos. E agora? Uma porta branca, mimetizada na parede branca, revela uma caverna. No centro do ambiente completamente escuro, uma lâmpada, que pisca ao ritmo das batidas do coração das 80.000 pessoas que gravaram os seus batimentos cardíacos nessa pequena casa, e que permanecem registrados alí, ecoando, em direção ao mar.

“Algumas histórias japonesas terminam violentamente. Outras não terminam nunca: no momento mais crítico se detêm numa borboleta ou no vento ou na lua.”6
Voltamos ao porto, a garrafinha de plástico segue em minha bolsa. Devolvi a bicicleta e comprei um sorvete - daqueles que se tira da máquina na hora sabe? - e por que não saiu perfeito, a bem-humorada senhora de antes não me deixou pagar.
✈︎♥︎
Becoming, Benesse Art Site Naoshima, p. 200, tradução livre
Viver como um japonês, Brian Phillips, Japão, The Passenger
Koans são pequenos poemas ou frases que o Zen budismo usa para provocar reflexão e discussão.
Ma, Entre-espaço da arte e comunicação no Japão, Michiko Okano
Ma, Entre-espaço da arte e comunicação no Japão, Michiko Okano
Viver como um japonês, Brian Phillips, Japão, The Passenger
Adorei te acompanhar nesta viagem, Pri 🧡